Por Heloísa Helena - PSOL
Em belo e antigo Sermão de Vieira há uma passagem sobre o Tempo que diz assim: “Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo contra colunas de mármore, quanto mais a corações de cera”! Esta bela citação pode ser utilizada para tentarmos esquecer as dores que nos são infligidas, os problemas intensos no presente e que serão minimizados na condição de lembranças do passado ou até como dita o texto originário para esquecer um amor perdido ou que não vale a pena ser vivido... Mas o tempo - que é tão utilizado pelos políticos ladrões como mecanismo de manipulação eleitoral por contar com a cínica “falta de memória” de grandes contingentes eleitorais – pode também promover no ser humano marcas profundas de brutalidade comportamental como resposta às vivências de extrema pobreza e situações graves de abandono e solidão. E esse tempo – se na Infância e na Adolescência – quando marcado por maus-tratos, negligência material e afetiva, exploração sexual, trabalho penoso, opressão, humilhação, espancamento e crueldade acaba por apagar o que todos nós somos na essência da infância... instrumentos de inocência, alegria, bondade, compaixão, amor incondicional. O grande desafio da atualidade é criar condições objetivas nas Políticas Sociais para impedir que o tempo nas vivências de miséria humana não seja capaz de destruir a possibilidade de que a infância seja vivida e tentar trazer de volta pra casa existencial a concepção infantil de pureza e inocência que todas as crianças verdadeiramente possuem.
Foi como parte indissociável dessa preocupação que há 21 anos foi aprovada a Lei 8069 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) com a legitimidade popular de mais de um milhão de assinaturas e com a participação direta de pessoas simples das periferias vulneráveis socialmente, de lutadores sociais engajados nas lutas em defesa da infância e adolescência, de brilhantes intelectuais em várias áreas da produção científica, de militantes de vários partidos... Enfim, foi estabelecida a lei reguladora de norma constitucional originária – Art. 227 da Constituição Federal – incorporando ainda ao sistema pátrio normas internacionais ratificadas pelo Brasil como a Doutrina de Proteção Integral da ONU e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Embora o Estatuto tenha nascido também na perspectiva de superar toda a carga discriminatória negativa do Código de Menores de 1979 - levando inclusive a tentativa de superação da terminologia “menor” para inviabilizar a concepção errônea de ausência de direitos ou a carga negativa da relação com autores de atos infracionais – hoje essa importante conquista é utilizada, por desconhecimento ou má-fé, também de forma irresponsável e preconceituosa como se esse importante instrumento legal fosse ferramenta para proteção de criminosos!
Essa Lei confere às Crianças e Adolescentes, em mais de 260 Artigos, direitos relacionados à garantia da dignidade ao desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social... direito à saúde, educação, alimentação, esporte, lazer, cultura, convivência familiar, profissionalização e acesso ao trabalho digno que não seja penoso, perigoso, insalubre... direito aos recursos metodológicos ( material didático, transportes, alimentação etc) e espaços pedagógicos para garantir inclusão - da Educação Infantil ao Ensino Médio – sem maus-tratos e negligência e na perspectiva de reduzir repetência e evasão escolar... direito de acesso aos meios de comunicação com programas educativos, culturais, artísticos, informativos e sem apologia às drogas (álcool e outras que também causam dependência física e psíquica)... direito à Saúde – desde o parto e em todos os programas de prevenção, promoção, recuperação e reabilitação... direito à uma família digna e estável economicamente e que possa também ser acompanhada por programas de proteção e recuperação/tratamento nos casos de dependência química ou na adoção com fiscalização e monitoramento... direito, nos casos de atos infracionais (do roubo de um chocolate ao horrendo crime), ao respeito do devido processo legal e nos casos de privação à liberdade que seja em local que possibilite a tentativa de recuperação social com escolarização e capacitação profissional e não a inserção formal em “escola de criminosos” etc. O conteúdo do ECA especifica em alternativas a consagração de direitos compatível com tudo aquilo que todas as Mães gostariam que seus filhos amados tivessem garantido na legislação em vigor...tanto para evitar que eles fossem assassinados por jovens brutalizados pela vida como também para que eles não se transformem em crianças e jovens corrompidos na essência e portanto assassinos potenciais.
A superação do vergonhoso abismo entre o que foi conquistado no arcabouço jurídico e a triste e violenta realidade a que estão submetidas nossas crianças e adolescentes é o que definitivamente impulsiona a valorosa participação cotidiana de grandes lutadores do povo seja nos gestos de solidariedade e compaixão partilhando o pouco que têm, seja nos espaços considerados formais como, por exemplo, conselheiros tutelares, pastorais, missionárias evangélicas e de todas as religiões, militantes dos movimentos sociais e dignas organizações não-governamentais, agentes públicos de vários partidos e profissionais capacitados e sensíveis diretamente vinculados a essa área.
Quando o Menino Jesus puder ser visualizado no olhar triste das crianças sem a hipocrisia dos comerciantes de Deus, quando os políticos vigaristas e seus bajuladores deixarem de roubar o dinheiro público das políticas sociais, quando a sociedade aprender a sentir a miséria e a angústia imposta a uma criança como se fosse a mutilação imposta aos seus próprios filhos... não precisaremos desse perfil de legislação pois teremos chegado verdadeiramente à modernidade! Até conseguirmos lá chegar continuemos as nossas lutas com passos firmes, perseverantes e destemidos para a garantia ao menos do respeito à Lei! E como diz a bela canção... “E nossa história não estará pelo avesso... Assim, sem final feliz. Teremos coisas bonitas pra contar... Apenas começamos!”
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